“É nesse intuito que procuramos compreender, por meio de um recorte estético e econômico, os fenômenos de mídia modernos com seus impactos sociais através, particularmente, os dos reality shows. Fenômeno a ser tomado como um campo de investigação privilegiado, por fazer convergir, de maneira inaudita, diversos interesses e relações de força, como as demandas do capitalismo pós industrial, pós-fordista ou imaterial por perfis identitários, motivados por suas “intimidades” publicáveis, desejos de visibilidade e autenticidade, dentre tantas outras demandas. Os reality shows, assim como o capitalismo contemporâneo em sua vertente imaterial, fariam então da própria vida, “anônima” e “real”, um terreno mais fértil, “criativo” e rentável para seus dinâmicos investimentos capitalistas modernos. Vale lembrar que “a integração na área da comunicação de massa (…) na lógica do progresso da racionalidade tecnológica” (MARCUSE, 2006, p.59) é sinônimo do fechamento do universo cultural. O “(…) campo das produções culturais (…)” (BOURDIEU, 2001, p.37) tinha como pólo de diferenciação funcional – a distinção – a alta cultura. Segundo Marcuse, a “(…) alta cultura esteve sempre em contradição com a realidade social” (Marcuse, idem, p.60), o que assegurava a existência de duas dimensões na sociedade. O fim desta díade dimensional ocorreu, não por força da “(…) negação e rejeição dos valores culturais, mas através da sua incorporação global nos parâmetros da ordem estabelecida, por intermédio da sua oferta e reprodução numa escala massiva” (Marcuse, idem, p.60). Indo mais além, estamos diante do que Walter Benjamin denominou de “reprodutibilidade técnica da obra de arte”, em que “quanto maior o significado social de uma [obra], diminui e tanto mais se afastam no público as atitudes críticas e de fruição (…)” (BENJAMIN, 1992, p.104), ainda que manipulada em sua condição estética. Na realidade, a massificação do uso (e usufruto) da comunicação de massa, na sua forma reproduzida, obedece ao princípio de “(…) tornar a alta cultura parte da cultura material” (MARCUSE, 2006, p.61). Porém, esta expansão da produção artística para o terreno da vida do comum mortal não é significado de democratização cultural. (BENJAMIN, 1992, p.82). De outro lado, temos “a invalidação da sua força subversiva, o seu conteúdo destruidor (…)” (MARCUSE, idem, p.64). <strong>Distante das críticas à banalidade de um suposto “cotidiano” e longe dos discursos de adesão, as tentativas de compreensão dos contemporâneos programas de realidade teleprogramada, amplamente conhecidos por reality shows, movem-se em terreno incauto e banalizador.</strong> Tal como nosso tempo, os reality shows requerem um entendimento mais amplo que contemple suas formas cambiantes, múltiplas e seus efeitos paradoxais – análise e diagnóstico que não implicam predizer, apontando o dedo em riste para a comunicação moderna e seus dispositivos culturais. Por isso, é sempre tão desafiante tentar analisar os efeitos alienadores, ou, no caso da perspectiva aqui postulada, dita como comunicação dialética, aquilo que faz da própria vida, matéria-prima de observação, instrumentalização e subjetivização compartilhada. Porém, quando falamos em “o” fenômeno dos reality shows, de modo algum queremos circunscrevê-lo, ou reduzi-lo, a um corpo único, desprovido de matizes e produtor de sentidos banais. De modo algum queremos obscurecer a singularidade dos objetos que constituem tal fenômeno, domesticando-os como mero e ilustrativo suporte para uma tessitura teóricoconceitual. Tendo em vista as relações de poder forjadas por esses programas televisivos, o “fenômeno” a que nos referimos, indica que os reality shows, de uma tendência internacional no mercado do audiovisual, têm se transformado em presença permanente, de manifestação massiva que se difunde pela mídia, nacionais e estrangeiras, por meio da pluralidade de gêneros e formatos, da horizontalidade das formas de produção, exibição e circulação e, no caso do Big Brother Brasil, nosso mais expressivo reality, por meio do desenvolvimento
galopante da chamada convergência de mídias, que insere o BBB (Big Brother Brasil) como o produto central dentre uma rede de tecnologias e serviços. Serviços que, pautados por demandas de interatividade, essa capciosa forma de incitação à adesão voluntária, mobilizam simultaneamente diversos suportes tecnológicos e comunicacionais, como a televisão aberta e fechada, a telefonia fixa e móvel, site, fóruns, chats e canais de exibição na internet, além das publicações diárias e periódicas, eletrônicas ou tradicionais – das revistas de “gente” à pornografia, passando por diferentes perfis de jornais. Em todas essas mídias, por mais diversificadas que se apresentem, trata-se de fazer convergir um mesmo interesse: é preciso que tudo se torne visível para que se possa administrar, prever, programar, monitorar e simular. É preciso que tudo se torne visível para que se possa não mais vigiar e punir – como nas modernas sociedades disciplinares -, mas espiar e premiar, controlar e estimular, constranger e liberar. Binômios paradoxais moduladores da experiência e da vida nas contemporâneas sociedades de controle, vida que tanto escapa às dominações quanto demanda ser por elas reativada, vida que reivindica a possibilidade de se furtar ao olhar alheio ao mesmo tempo em que solicita ser permanentemente observada. Antes, para além de um possível voyeurismo, trata-se da interiorização da vigilância por meio de um pacto de encenação, que por sua vez implica uma relação de poder produtiva, e não repressiva: encenando-se a si mesmos e interpretando seus tipos, em reação e em relação às câmeras, os participantes de um reality show demandam ser constantemente observados, em um tipo de pacto em que o ato de espiar, vigiar ou espreitar é ressignificado.
Enquanto dispositivo, isto é, enquanto um modo de operar dotado de uma lógica e de efeitos que lhe são próprios, os reality shows se articulariam a outros objetos audiovisuais contíguos – como blogs, fotologs, vídeos amadores, simulação de flagras, transmissões via webcams, transmissões esportivas televisivas e alguns filmes documentais e ficcionais -, tendo sempre
em vista de que se trata de um “mesmo”, porém bastante plástico e plural, regime de visibilidade. Dando então continuidade às metáforas clínicas foucaultianas, não se trataria, assim, como uma “lógica cultural do capitalismo imaterial”, designamos um duplo movimento, tanto os programas em si mesmos quanto a lógica, também dupla, por meio da qual operam, a saber: a
convergência de “técnicas políticas” que se pretendem objetivas e totalizantes – como a vigilância, o controle, a regulação dos comportamentos e da dimensão libidinal da vida, a punição e a premiação – com técnicas subjetivas de individualização, ou “tecnologias do eu”, por meio das quais se realizam os processos de subjetivação, de criação identitária, de autoexpressão
e de exteriorização de si como personagem público. É habitando esse duplo vínculo político, entre as técnicas políticas e as tecnologias de individualização, entre a interiorização dos poderes e da vigilância e a modulação dos processos de subjetivação, que a vida agenciada pelos reality shows revela-se, pelo menos em princípio, como o fundamento das democracias ocidentais modernas: pois, quanto mais rentabilizada e valorada como um “capital pessoal” a ser cuidadosamente administrado, negociado e atualizado; quanto mais investida e atravessada por poderes, dispositivos e tecnologias; e, quanto mais aparentemente valorizada, em sua dimensão “cotidiana” e “ordinária”, mais a vida é instrumentalizada, expropriada de sua existência propriamente política e reduzida a uma performance: comportamental, sexual, midiática e profissional. No caso do dispositivo Big Brother, essa “forma narrativa da dominação” se dá não apenas por sua disseminação horizontalmente globalizada, em um nível macroeconômico, mas, sobretudo, pelo modo transversal com que ela atua sócio-culturalmente, em um nível microfísico. É no âmbito da própria diegese1 do programa que se efetivam, de fato, as variadas formas de dominação, subjetivação e exclusão, em uma dinâmica de poder que faz da “motivação” e das “técnicas motivacionais” (com todos os afetos que elas implicam) desse dispositivo de produção subjetiva alterdirigida e simultânea produção capitalista, quando os modos ou “estilos de vida”, mesmo os mais singulares, se tornam a fonte de energia que alimenta a permanente renovação das tecnologias da comunicação, das irrestritas estratégias de marketing e dos fluxos capitalistas. Assim, ao naturalizar e consolidar, por meio das opções e operações de linguagem, relações de força e de poder no bojo daquilo que chamamos, usualmente, de “leis de mercado”, os programas de realidade tele-programada, com toda a criatividade narrativa e dramatúrgica que possam apresentar – basta acompanhar os desenvolvimentos de uma decupagem narrativa nas sucessivas edições do Big Brother brasileiro -, prestam-se a uma função social-técnica: espécie de serviço “público” ou programação e regulação pedagógica das condutas “privadas”. Certamente, um e outro “modelo” muitas vezes se sobrepõem. Além dos reality shows de confinamento hedonista e voluntário (sendo o Big Brother a matriz), cujo dispositivo de convivialidade vigiada estimula a produção de conflitos e a exposição de condutas privadas. Há um realiity show “profissionalizante”, cujo método passa por estratégias de humilhação deliberadas (caso de “Ídolos”, por exemplo), além dos reality shows de intervenção: aqueles que, enquanto oferecem oportunidades de reformatação – do corpo, da casa ou do comportamento – para os participantes, funcionam como um tipo de serviço “assistencial” para os telespectadores. Neste caso, é possível aprender a: emagrecer (“Você é o que você come”; “O Grande Perdedor”), cuidar dos filhos, (“Superbabá”), adestrar homens (“Traga seu Marido na Coleira”), submeter-se a homens machistas (“Garota FX”), reformatar o visual através de cirurgias plásticas (“Extreme Makeover”; “The Swan”, “Beleza Comprada”), dominar técnicas de sedução (“Inspetores do sexo”), empreender ações ambientalistas (“Planeta em ação”), arrumar e remodelar a casa (“Minha casa, sua casa”, “Queer eye for the straight guy”), vestir-se de acordo com a moda em voga (“Esquadrão da Moda”), ser competitivo na selva (“Survivor”), ser competitivo no mundo corporativo (“O Aprendiz”), além de diversos exotismos: como desempenhar o papel de mãe em outra família cujo perfil identitário seja oposto (“Troca de família”), dispor de apenas um único mês para mudar radicalmente de profissão (“Tudo é possível”), sobreviver em uma fazenda de 1900 nas condições do passado (“A casa de 1900”) ou conviver com tribos que habitam remotas regiões do planeta (“Woman on the tribe”), para citar apenas alguns. Não seria exagero, portanto, sugerir que, cada vez mais, os dispositivos tecnológicos, telecomunicacionais e audiovisuais contemporâneos põem em funcionamento – como já nos havia alertado Paul Virilio, no início dos anos 90 – um “integrismo técnico”, marcado por algumas propriedades do divino, como, além da onividência e onisciência, a onipresença, a ubiquidade, a instantaneidade e a transparência. Nesse sentido, poderíamos também compreender a proliferação de reality shows e de toda sorte de objetos audiovisuais contíguos que apelam constantemente à realidade, por meio da intensificação de efeitos de real e de verdade, como a expansão de um regime de visibilidade fascinado. Lembrando que em “Admirável Mundo Novo”, Huxley também dá muita ênfase ao empobrecimento cultural e da linguagem, quando várias de suas alegorias abordam os chavões, os slogans mecânicos e
hipnóticos a que as pessoas eram condicionadas. Então por este aspecto, é válida a crítica aos ataques à comunicação ultrajada e à pobreza das preferências das massas. Porém, criticar a debilidade cultural pura e simplesmente, sem esta reflexão sobre as correlações no campo da capacidade de resistência e outros ângulos da questão, pode nos levar a defender a dominação, pois, como foi dito em alguns dos textos sobre o assunto, o domínio da comunicação é um fator de distinção social, de segregação, de exclusão. Este é o ponto de ebulição em questão – a comunicação de massa é a comunicação feita de forma industrial, ou seja, em série para atingir um grande número de indivíduos, a sociedade de massa. Numa visão apocalíptica, ela é uma conversão da cultura em mercadoria, utilizada pelas classes dominantes de forma vertical para homogeneizar as massas. Para definir esta conversão, os frankfurtianos Adorno e Horkheimer criaram o termo Indústria Cultural, citado pela primeira vez em Dialética do
Iluminismo. A Indústria cultural é consequ?ência da industrialização e do desenvolvimento de uma cultura de mercado e exerce um poder alienante sobre as massas, impedindo que elas tenham um certo grau de consciência e reflitam sobre o mundo à sua volta. Segundo Lazarfeld (“The People’s Choice”- 1944) a comunicação possui uma “disfunção narcotizante, pela qual os meios de comunicação criam a ilusão de uma participação nos processos que definem a sociedade, mas é neste mesmo movimento ilusório que eles imobilizam suas audiências.” Esta disfunção fica clara na comunicação de massa. Alguns teóricos afirmam que a comunicação de massa não é uma verdadeira comunicação, pois a comunicação é uma via de dois sentidos e a comunicação de massa ocorre num único sentido. Mesmo assim, a comunicação de massa é um fenômeno praticamente mundial, o que proporciona um mundo “unido pela comunicação” ou o surgimento da Aldeia Global. Corroborando com as ideias McLuhan (1971), podemos afirmar que as culturas de massa criadas pelos modernos meios eletrônicos (sobretudo a televisão), e sua linguagem própria, baseada na imagem, significa o surgimento de uma nova cultura popular capaz de permitir a comunicação entre os habitantes da aldeia global em um mundo comprimido pelas redes eletrônicas de informação, de onde deduzimos
que não há a preocupação com o que se informa, a estes meios, já que basta, tão somente comunicar.
© 2014 sergio